Opinião

HOMENAGEM (Á SOMBRA) A UM VELHO DELIQUENTE


Tenho que esperar, a morte não tarda. Isto aqui por dentro roi-me,… silenciosamente. Por dia gasto 3 escarradouros cheios de sangue podre. Mais sujaria se o da cama 6 não levasse com ele nas trombas. O que me alegra, é a visita do coveiro, meu amigo despretensioso. Bem sei que lhe daria grandioso prazer em enterrar-me, não propriamente por lhe ter feito a vida negra… mais exactamente por o fazer sentir um verdadeiro profissional, um homem encartado pelo sindicato, um cidadão que não deve mendigar respeito por cada lágrima que vê verter nas bordas da cova, Que venha!
Mas ainda estou vivo! Todo eu não sou só bócio, sensibilidade também me assiste, este sentimento traz-me, às vezes, a imagem do meu neto, rapazote forte, bem diferente do lingrinhas do pai. Feitos dele cá me chegam, apraz-me sabê-los. Nem o meu filho escapa, a mulher o mesmo. Decerto este sentimento não teve só origem na ligação genética, mas sim na trampa que então cagou lá por casa com estas consequências, para mim evidentes; porque a todos a quem tramei a existência, devem sentir o contrário. E nem sei se não beneficiei mesmo, tanto mal faz uma pessoa na vida, que pode perder a noção das acções, e tornar-se bondosa e alinhada. Engraçado… ainda não atingira este raciocino.

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… Vida como a minha, só aos vermes cuja família lhes guardam o enterro pendurado atrás da porta, a repugnam. Sensibilidade que cá dentro circulam sem tibiezas, são fieis entre si e conflituosas contra o exterior. Não há sequer alguma que ouse, em contenda, tombar vencida e de caganeira junto às patas impiedosas do inimigo. Aí estariam as restantes que brotariam vulcanicamente das minhas glândulas, deixá-las-ia romper-se, nem que se multiplicassem abrupta e impiedosamente alguidares a esbordar de vacúolos, os calos, a prótese me infeccionasse, me vertesse de ácido úrico por dentro dos tecidos…, e então elas calcinariam a refractária em qualquer âmago incauto , em retretes, asilos, em qualquer pessoa que escorregasse junto ao poço das minhas emoções.
Lençóis lavados,,, algum trato social, limpeza… para quê? Relativamente a quê? Às doenças? Aos desequilíbrios orgânicos que teimam projectar-nos aparados na carne para o fosso com sete palmos de terra? A qualquer evolução dolorosa e prolongada que nos faça sentir o percorrer de tumefacções, caroços e cancros no interior das veias? Que se foda a limpeza! Mais vale uma lixeira prenhe, do que um salão encerado e brilhante superlotado de seres podridos, putrefactos. Aqui penetra a revolta . Qual? Os mortos que a definam.

V.L.



Animal quase tísico…

Consola-me a companhia do meu gato, animal quase tísico, careca no pescoço, cabeça esguia, bigodes farfalhudos, orelhas hirtas. Porém não mia, é um cagão, só deixa cair bolinhas. Mas é um consolo tê-lo no cubículo. Pelo menos naquelas horas difíceis em que segrego baba, eu não preciso de acordar, já sei que ele se aproveita da lava que escorre no sentido do penico e lambe a que pode. Quanto à existência da abundância de baba que se me solta, não passa despercebido, já fui levado à presença de médicos da especialidade, e apenas diagnosticaram possíveis espumas de raiva encastradas nas paredes do meu cubículo, ou paranóias acrílicas, de raiz medieval, que me afetam. Por norma, sentado na cama, logro pôr os pés no chão. Numa manhã um pé cai-me no tapete, o outro, erroneamente dentro do penico.
Azar maldito. Havia ainda algum tempo...e o pé no mijadouro não se soltava. Há que organizar, adiantar o procedimento; e se urinasse no pote!?, dada a circunstância da existência daqueles líquidos transformados em pasta, os que estão dentro de mim e os outros colhidos pela noite. Lá consigo deslizar o pé a 90 graus, girando-o como compasso escolar e retiro o pé pela zona mais larga do recipiente. Um penico já ovalizado por tanta coça levar, pois não permito mais que em certas noites não faça frente ao meu querido gato, que o arrasta pela asa, e se desvie do rebordo da cama, deixando ao ostracismo as minhas excrescências. Quando o pote está vazio , vejo logo que não esteve de vigília e não fez frente ao gato. Assim atiro-o contra a parede.
Mas nessa noite a premonição do meu gato tivera eficácia. Só miava, inquietava-se com tudo. Até me mijou nas pernas! Lá tinha a sua razão. Afligira-se com o meu sonho; não é que eu sonhara que o caudal da baba engrossara, inundando a casa. Posso dizer que era quase impossível que o gato resistisse à torrente, nadaria de costas na enxurrada de lava, enquanto que o penico desta vez assumia um papel mais activo, aparar o máximo possível as minhas excrescências.
Acordo esfrangalhado, a flora anal carcomia-me, mas o sonho, o principal, esse descompressor de repressões quotidianas, bem apurado por Freud, não se volatilizava...mas acordei, estarão a sentir, e ainda tive tempo de ouvir bater a porta, era a fuga da Miquinhas Manhola. Acabara de me enfiar panos quentes de água de cu lavado. O gato por seu turno, indiferente ao reboliço, secava o lombo no rebordo do postigo.

virgílio liquito

3 comentários:

  1. Obrigado pela participação no Blog. Abraços

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  2. Escama puxa escama...
    Ah tempos de força, de coragem. Não éreis vós que me controlavam. Saúde não me fugia, excumungava-a . Que cavalo que eu era…, e o meu filho bem notava. Mesmo sem me irritar, tombava-o à primeira pancada. Dava-me cá gosto em fazê-lo… Eu bem tinha dito à mulher que ela era a culpada. Vá lá um homem entender estas fêmeas que clamam…. Clamam por filhos. Bom, se ela o engendrasse sozinha…. Aparecia com ele em casa, e ao menos poupava-me de esforços. Não atino com ele, que vá viver ao caralho! E de nada adianta todos estes anos de reflexão e tolhimento, sou casmurro e não mudo de gases. Se um dia morrer ele será o verdadeiro testemunho em como já tive, bastante energia. E até fico estupefacto como ele conseguiu emprenhar a mulher, tão raquítico que é,
    Agora dizem para aí que já estou podre, que borrifo sangue. Acho que o meu hálito metálico justifica alguma saúde. E esta treta de ontem me transportarem ao B.C.G., por si só não me amofina, Diz o internado da cama 6 que é por causa dos pulmões. Que conhecimentos médicos terá ele para analisar os borrifos de sangue que às vezes do ar lhe caem no focinho?... Perneta! Deve ser tuberculose… Mas ar não me falta. Agora cabeça… vai-se arranjando. Depende do que se pensa ou do equívoco. Tantas vezes solicitamos a mente… Já aconteceu querer lembrar-me de quem não me visita e encontro na mente puras abstracções simiescas. Até em questões de identidade própria, com o calor humano. Por exemplo, o da cama 6 só tem cotos nas pernas, coitado foi trucidado por ser bom demais. Costumo desejar-lhe coisas da arte do camanho. Há dias grunhi-lhe para se levantar e trazer-me a aparadeira. Rápido o tipo respondeu-me que eu era cá um gozão… Mas retorqui-lhe logo, com determinação, que estas palavras maldosas não eram minhas, mas sim que imperava nelas a inocência, e que tinham saído do buraquinho da prótese. Atónito e fanhoso falou deste modo – como é que aconteceu isso?... – e gesticulei-lhe então com um dedo, que o buraquinho tem uma palinha, e que por sorte de deus, sabe-se lá, o ar ao passar por ali assobiara, que se mudaram as palavras e que os complexos dele haviam feito o resto. Que faça como eu, que não emprenhe pelos ouvidos , que aproveite o tempo para se coçar. No coçar é que o metabolismo se mantém; escama puxa escama. Ele é que está senil…!
    ......V.L.

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